Saturday, July 01, 2006















(Gravura: Ferla/Título:Bossa-Nova)
Sensações Habituais II.

Eu não sei quem surgiu primeiro, a poesia de amor ou o sentimento, a música romântica ou o amor. Às vezes essas obras parecem pré-existentes e penso que sem elas, sofreríamos menos. Não fantasiaríamos tanto uma relação e, num dado momento, em local adverso, encher os olhos d’água quando se ouve alguns acordes que lembram alguém que já não está mais ali, nos deixa num estado de espírito que faz com que tudo á nossa volta - lotações, outdoors, ambulantes, lojas de calçados, emprego, propósito - permaneçam em espécie de suspensão atemporal enquanto a letra e os arranjos te levam á uma dimensão que só o homem afetado pode sentir e não adianta querer transmitir, seja em música, prosa ou verso. A dor pode gerar belas palavras, mas não há palavra capaz de traduzir as dores que alucinam.
Quando falo dessas músicas com dons de transformar a nossa existência por alguns minutos, enchendo a vida de saudades, não me refiro á qualquer reles canção romântica, mas aquelas que ouvíamos juntos e que muitas vezes significavam e significam a construção histórica de uma realidade que só existe nesse instante mágico e pensamos o que deveríamos ter feito. Como disse Pessoa na pessoa de Bernardo Soares: “Qual de nós pode, voltando-se no caminho onde não há regresso, dizer que o seguiu como o devia ter seguido?”. Fico perplexo com os seres que abrem a boca repletos de satisfação e falam, até esvaziarem os pulmões, que não se arrependem de nada que fizeram. São criaturas incapazes de abstração. Mas de que serve a abstração no sentido prático da vida? Mas pra quê sentido prático da vida se num instante de sol ou chuva posso ouvir as vozes e as melodias no meu instantâneo mundo de altista?
Eu até queria dar um significado universal ao que estou escrevendo como se quisesse conferir uma carga de literariedade só que, se eu não tivesse sentado neste buteco e não houvesse tocado Tim Maia no rádio, eu jamais me recordaria daquela tarde em que bebíamos juntos e comíamos pastel com o velho Duda na Kalilândia, do teu sorriso na chapada Diamantina ao som do Led Zeppelin, dos teus cabelos que tingiam o céu de Cachoeira embalados por Ventura dos Hermanos, das coreografias imprevisíveis se Cake era a pedida, seus sussurros e gemidos com Etta James e de como era bom te amar ouvindo tua voz mesclada à de Cássia Eller ou Janis Joplin.
Nossa última canção antes do fim foi I want you do velho Dylan e, se você quiser, transforme tudo que escrevi em música que é pra tocar no rádio, no rádio do teu coração.

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