Friday, June 09, 2006

Esse conto aí em baixo faz refletir sobre algumas coisinhas que ás vezes nos enfernizam.


Sensações Habituais

“Inebriantes e inefáveis senhas de um segredo”, é exatamente o que penso ao deixar qualquer sentimento ir e vir enquanto examino as formas que se escondem na fumaça. A estrofe do poema se encaixava perfeitamente.
Esvazio o cinzeiro e, ao ligar a tv, a primeira coisa que ouço num noticiário qualquer: “cresce o investimento em pesquisas no combate a AIDS”.Eu nem gosto de pensar sobre o caso.
Começo logo a lembrar de todas elas, dos nomes, se anda estão vivas, se tem filhos, se os filhos estão saudáveis, se me sinto doente e esse tipo de coisa. Aí você pensa: tenho que fazer o exame.Mas eu não sou hemofílico, não uso drogas injetáveis, só fudi sem camisinha. Que pecado desgraçado fuder sem camisinha. Napoleão, Camões, Shakespeare, Heminghway e todos os seus contemporâneos
fuderam sem camisinha. Só a minha merda de geração que precisa de um plástico nojento.
Aquele gélido momento em que o cara interrompe todo o frenesi pra botar a camisinha merece uma ode.
Tenho que tomar uma birita, dar uma volta. Vou fazer o exame. Meu deus, ha pouco tempo, o máximo que uma pessoa adquiria era uma sífilis ou gonorréia, penicilina resolvia. Agora é a maldita.
Os grandes laboratórios estão nadando em dinheiro com uma doença que não tem cura. Acho que se achassem a cura não haveria mais dinheiro pra pesquisa e eles morreriam á mingua. O que interessa é o combate vitalício. Somos meros porcos com mania de grandeza. Isso tudo também pode ser idiotice, quem descobrisse, iria ficar milionário e seria como o salvador da humanidade e nós; doentes ou possíveis doentes, colocaríamos sua foto dentro da carteira pra lembrar daquele homem que ganhou o premio Nobel e salvou a humanidade antes dela se destruir em lixo, fome e guerras sem fim.
Tenho que fazer o exame. Rafaela tinha a bunda mais perfeita da universidade, mini-saia, muito vinho, não resisti. A gostosa do reveillon em Morro do São Paulo, a ex-namorada do grande amigo, a vizinha ha milênios cobiçada. Tenho que fazer a desgraça do exame. Se eu estiver limpo vou contar pra minha namorada.Se eu estiver infectado? Eu preferia uma morte mais rápida, sei lá, talvez lutando contra os EUA numa futura guerra pela Amazônia. Se não tiver jeito é melhor se jogar de um penhasco.
Só a espera do resultado pode destruir meu estomago. Toda a minha vida decidida num pedaço de papel, ou melhor; de látex. Nesses momentos de desespero e tensão é que o homem se volta aos céus a procura do ser criador, somente no instante em que teme voltar a ser pó.
Vou tomar coragem. Amanhã bem cedo vou num hospital e faço logo esse negocio. Não tive filhos, como Brás Cubas e nada publiquei, como Kafka. Sendo filho único, minha mãe pode chegar à loucura, mas, como ela acredita em reencarnação, pode ser que supere. To meio obcecado, é melhor dar uma volta, tomar uma cerveja.
Lembro duma ex-namorada que era uma maravilha de sórdida e só queria sexo anal e, é claro, sem camisinha. Na opinião dos especialistas, se a mulher estiver infectada, as chances de contaminação através de sexo vaginal são de aproximadamente uma em dez e sexo anal é risco certo. Pensando bem, quando lembro daquela bunda, chego a conclusão de que curti muito. Já posso morrer.
È melhor ter a certeza do que ficar a vida inteira como um cadáver à procura de diarréias sanguinolentas e manchas pelo corpo.
Vou agora mesmo fazer esse exame, mas são oito da noite. Se eu não fizer hoje, se deixar pra amanhã eu vou esquecer e quando ouvir qualquer coisa relacionada a AIDS vai começar tudo de novo. Minha cabeça não para de girar. Tudo porque agimos como cachorros ensandecidos em busca de uma gozada. Poderia ser um homem puro a procura de um grande amor e estaria a salvo. Cristão ortodoxo, monogâmico eterno e estaria salvo. Apenas uma merda de questão hormonal. Quanto tempo leva pra entregar o resultado? Eu não agüentaria esperar, sou muito ansioso. Pra que liguei a tv? Sou sadio, nado, jogo bola, mas posso estar só com o vírus, a doença ainda não se manifestou. Talvez esteja me agourando.
Não agüento mais, vou fazer o exame e, se deus quiser, lá estarão as benditas palavras: “soro negativo”. È preciso ter fé na ressurreição de Lázaro, na restauração da visão ao cego e em todos os milagres quando penso que estou condenado. Nunca matei ninguém, porque logo eu? Pode ser que não tenha nada, que esteja limpo e, mesmo assim, num certo dia, de aids, de overdose ou na guilhotina; todos certamente vamos morrer. Pelo menos posso descartar todas as virgens que fizeram parte de dias memoráveis.
Devo, com certeza, estar enlouquecendo. O que tenho na carteira dá pra três cervejas, vou levar um cd do Science e outro do Led que fazem esquecer qualquer problema acompanhados de doses homeopáticas de álcool.
Chego ao trailer sem me dar conta, peço ao camarada pra colocar o som e o primeiro gole de cerveja é acompanhado de um carinhoso sorriso de felicidade. Agora ta bem melhor.
Na ultima cerveja o coligado colocou um material do Louis Armstrong e quando ela passou com aquele shortinho, ao som do trompete magistral, eu me apaixonei e clamei abertamente ao amigo do trailer:
_Uma daquelas, se botar camisinha estraga. Meu deus, que coisa mais linda, ela mora aqui no bairro?

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